A tribo do Homo Zappiens

Por Rosangela Maria Cunha em 15 de maio de 2009
Homo zapiens

As amigas Isabela Scretas e Elisa Bueno de Vita, ambas às vésperas de completar 14 anos, estão sempre conectadas no mundo virtual

À primeira vista, eles são muito parecidos com o "Homo sapiens", a espécie que domina o planeta há 150 mil anos. As necessidades básicas, pelo menos, são as mesmas: comem, dormem, usam roupas - tudo como seus antepassados. Mas há um aspecto que os torna quase uma nova espécie: a comunicação entre si e com o mundo. Conheça o "Homo zappiens", a geração que já nasceu com o computador, a internet e toda sorte de dispositivos que podem ser controlados a distância com alguns toques dos dedos.

Com idade entre 13 e 15 anos, em média, eles ainda dependem dos pais para a maior parte das coisas, seja comprar um par de tênis novo ou sair com os amigos no fim de semana. Mas em poucos anos, observam profissionais que incluem de psiquiatras a marqueteiros, eles serão maioria e agirão segundo os próprios hábitos. Só aí é que sua força será percebida plenamente. A pergunta que todos fazem agora é: que tipo de sociedade será essa?

Entre os adultos, uma das principais preocupações é a suposta falta de comunicação da tribo dos "Homo zappiens". Se as gerações anteriores de pré-adolescentes costumavam ficar horas na porta do colégio, matando tempo depois das aulas, as atuais correm para casa. Mas, assim que chegam, ligam o computador ou acionam o celular para trocar mensagens entre si. De texto, diga-se. Chamadas de voz estão caindo em desuso.

Em uma tarde de quarta-feira, "Mark" entra na sala de bate-papo do Omegle.com. O nome do garoto é fictício. Ele diz ser americano - o que provavelmente é - e ter 17 anos. Mas pode não ser nada disso. "Mark" não revela seu nome real, já que o Omegle dispensa até o tradicional apelido. Há meses ele acessa o site, cuja proposta é aproximar pessoas absolutamente desconhecidas umas das outras. Fã de música e cinema, especialmente do ator Edward Norton, ele diz já ter conversado com muita gente, mas nunca voltou a falar com nenhuma delas. Qual, então, o atrativo do site? "Não vou dar informações pessoais a estranhos", responde Mark. Não, não se trata de uma questão de segurança, como muitos pais sobressaltados poderiam pensar. "Isso é a internet. É assim que as coisas são."

Personagens como "Mark" mostram que o problema não é a falta de comunicação. Pelo contrário, nunca tantos e tão fáceis meios de comunicação estiveram à disposição do público. No Brasil, 25,5 milhões de pessoas se conectaram à internet, de casa, em março - 12% mais do que um ano atrás. Ao todo, o instituto Ibope Nielsen Online projeta a existência de 62,3 milhões de pessoas com acesso à internet no país, incluindo residências, escritórios, bibliotecas e lan-houses. Em março, cada usuário passou em média 26 horas e 15 minutos conectado à rede mundial. É mais do que um dia inteiro e supera a marca de qualquer outro país. O Reino Unido e a França, que vêm logo em seguida, registraram 25 e 24 horas, respectivamente.

A conclusão a que muitos observadores estão chegando é de que a comunicação é hoje ainda mais farta. O que mudou é sua natureza. "Essa é uma geração que viveu uma infância confinada, repleta de medos de sair de casa", diz Celia Belem, pesquisadora de comportamento do consumidor, habituada ao público jovem. "Por conta da violência, eles têm carência de liberdade e desenvolveram uma relação estreita com a tecnologia." Esse novo modo de viver, embora esconda riscos como qualquer outro, não pode ser encarado como necessariamente ruim, alerta Celia. "Isso faz parte de uma cultura nova."

Em parte, esse apego à tecnologia é decorrência de mudanças de hábitos de toda a família e não uma conduta exclusiva do adolescente. Segundo Celia, os adolescentes de hoje são diferentes dos de oito anos atrás. "Eles vêm de uma infância muito ocupada, o que os obriga a ter de pensar aos 13, 14 ou 15 anos sobre responsabilidades que antes só apareciam aos 17." É o caso da escolha de cursos e da própria carreira profissional.

Próxima de completar 14 anos, Elisa Bueno de Vita usou a mesada para completar o dinheiro necessário para comprar o próprio computador. É o terceiro equipamento da casa, mas ela pediu a máquina porque os outros dois estavam sempre ocupados pelos pais. Além do micro, Elisa já usa o celular desde que tinha por volta de 10 anos. Com toda essa conectividade, no entanto, ela não gasta mais que uma hora por dia na internet. "Acho pouco, mas tenho muita coisa para fazer", diz Elisa. Sua maratona diária, que começa às 6h30, inclui escola, curso de inglês, aulas de circo e terapia, além de cursos preparatórios de matemática e português, que ela faz já pensando na preparação para o almejado curso de engenharia na universidade.

Uma de suas melhores amigas, Isabela Scretas, que vai fazer 14 anos em junho, ganhou o próprio laptop há dois anos, mas sabe mexer em computador desde que tinha 7. "Pedi o laptop de presente de aniversário porque o outro computador da casa estava sempre ocupado pelo meu pai." O celular veio bem antes: Isabela ganhou o seu aos 10 anos. Essa dupla, celular e computador, foi concebida para fins diferentes, mas nas mãos do "Homo zappiens" serve à mesma finalidade em boa parte do tempo: funcionar como uma central para enviar e receber recados.

"Não sou proibida pelos meus pais de falar ao celular a qualquer hora, mas acho mais fácil mandar torpedos ou usar o [site de relacionamento] Orkut e o [programa de mensagens instantâneas] MSN", diz Isabela. Essa também é a preferência da amiga Elisa. Ela usa o celular para ligações telefônicas tradicionais só quando o assunto é muito reservado. Fora isso, prefere os novos meios. "No Orkut você pode encontrar todo mundo ao mesmo tempo e ainda escrever mensagens, mesmo que as pessoas não estejam on-line", justifica. "Além disso, enquanto deixa os recados, a gente pode fazer outras coisas."

Empresas de vários setores, principalmente os grupos de mídia, estão atentos a esse comportamento. "As crianças, pré-adolescentes e adolescentes são multitela. Eles ouvem música, mexem no computador e assistem a TV, tudo ao mesmo tempo", afirma Álvaro Paes de Barros, presidente da Viacom no Brasil. O executivo é um especialista nessas faixas etárias. Entre as propriedades da Viacom, um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, estão os canais de TV MTV e VH1, destinados ao público jovem. Barros comanda toda a distribuição da MTV na América Latina, excetuando o Brasil, onde o canal é controlado pelo grupo Abril, que detém 70% do negócio.

O desafio para grupos de comunicação e entretenimento é perceber as mudanças no comportamento do público e fazer as alterações necessárias para manter a maior audiência possível. Na Viacom, que detém companhias como os estúdios Paramount e o canal infantil Nicklodeon, a estratégia é levar a programação disponível a todas as mídias possíveis, incluindo a internet e o celular. "Temos de estar em todas as plataformas", explica Barros. O executivo discorda, no entanto, do que considera uma visão apocalíptica do impacto dos novos meios sobre os negócios.

Julio Bittencourt/Valor
As amigas Isabela Scretas e Elisa Bueno de Vita, ambas às vésperas de completar 14 anos, estão sempre conectadas no mundo virtual

Barros tem presenciado seminários nos quais os participantes anunciam que a chegada dos "Homo zappiens" à fase adulta vai acabar com a televisão, os livros, os jornais e até os shopping centers. Tudo, afirmam esses profetas, migraria para a web. "Não vai acontecer nada disso", garante o executivo. "A adoção da tecnologia, hoje, é muito mais evolutiva do que revolucionária."

Isabela e Elisa são prova disso. As duas já compraram mochilas, DVDs, amplificadores de iPod e livros pela internet, mas acham mais atraente ir às lojas. Elas também criticam os colegas que abandonam a leitura de livros e jornais para buscar quase exclusivamente na internet as fontes dos trabalhos escolares. Elisa lembra de dois alunos que foram expulsos de seu grupo de trabalho na escola, depois que se descobriu que eles haviam copiado trechos inteiros de um relatório da Wikipedia, uma das mais populares enciclopédias on-line. "A professora percebeu que eles haviam copiado por causa do uso de palavras que não fazem parte do nosso vocabulário", conta Elisa.

Não foram só as palavras que incomodaram a professora e envergonharam Elisa. Os alunos falsificadores citaram trechos da história do século XVIII para fazer um trabalho de matemática. Esse é um ponto que preocupa os educadores. As informações estão a um clique de distância dos alunos, mas muitos não conseguem transformar esse arsenal de dados em conhecimento sólido.

A própria língua está mudando, sem que se saiba ainda qual será a influência real da internet e do celular no idioma. Nesses novos meios, "mesmo" virou "msm", porque é "pq" e a letra "h" tomou o lugar do acento agudo, entre muitas outras transformações. Há quem diga que essa é uma deformação da língua que cobrará seu preço no futuro. Outros sustentam que os adolescentes de hoje saberão reconhecer as diferenças quando amadurecerem, assim como os adultos de hoje souberam lidar com a simplificação do idioma das histórias em quadrinhos.

Os adolescentes, com pais e educadores, terão de aprender a superar as armadilhas que a tecnologia esconde. Mas essa via do conhecimento não é de mão única. As novas gerações também têm o que ensinar. Também chamadas de nativos digitais, porque cresceram ao lado do computador, elas lidam com a tecnologia de maneira muito mais intuitiva que os migrantes digitais, aqueles que conheceram o PC e a web depois de grandes. "Talvez essa seja a primeira geração que inverteu a lógica da família, fazendo que o conhecimento seja transmitido dos filhos para os pais", afirma a pesquisadora Celia Belem. Como qualquer espécie nova, o "Homo zappiens" causa estranheza, mas não deve ser temido.

Fonte: Valor Econômico

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